Quero ser feliz modernamente, mas carrego comigo uma depressãozinha básica
Nos meus vinte anos, meu ídolo era o James Bond, bonito, corajoso, entendendo de vinhos e de aviões supersônicos, comendo todo mundo, de smoking. Mundano? Sim, mas Bond tinha a missão de salvar o mundo.
Hoje, não. A mídia nos ensina que os heróis da felicidade não têm ideal algum a conquistar, a não ser eles mesmos. A felicidade é uma autoconstrução de sucesso, de bom funcionamento.
Mas, mesmo não sendo o 007, eu queria ser feliz como ele. Lembro, fascinado, a primeira vez em que ele surge como personagem num cassino onde lhe perguntam o nome — ele acende um cigarro e diz: “Bond... James Bond”. Eu queria ser ele. Mas, como? A felicidade oficial da mídia comanda meus ideais. Nas revistas, vejo os ídolos contemporâneos malhados, ricos, rindo entre modelos e apresentadoras. O ideal de felicidade é uma solidão narcísica cercada de admiradores, o brilho solitário que suga o prazer, sem conflitos, sem afetos profundos, mas sempre com um sorriso simpático e congelado, porque hoje é mais “comercial” ser alegre do que tristemente carregar a dor do mundo. (Este artigo está com a cara dos apócrifos que colocam na internet com meu nome mas, tudo bem — serei apócrifo de mim mesmo.) Continuemos.
Antes, havia uma certa tristeza na felicidade. Vejam os rostos melancólicos, paralisados de desespero das mulheres casadas, nas fotos de época. Olhando os retratos antigos, vemos que a felicidade masculina estava ligada à ideia de “dignidade”, vemos os barbudos do século XIX de nariz empinado, os perfis de medalha, donos de um poder total no lar, sobre a mulher e os filhos, aterrorizados diante do pai implacável.
Eu, não; quero ser feliz modernamente, mas carrego comigo uma depressãozinha básica, medos, traumas. Sinto-me aquém dos felizes de hoje. Não consigo me enquadrar nos rituais de prazer. Posso ter uma crise de melancolia em meio a uma orgia, não tenho o dom da gargalhada infinita, posso broxar no auge de uma bacanal. Fui educado por jesuítas e pai severo, para quem o riso era quase um pecado.
Para mim, felicidade sempre foi uma missão a ser cumprida, a conquista de algo maior que me coroasse de louros, a felicidade demandava “sacrifício”, a luta contra obstáculos. Como quebrei a cara nessa busca de plenitude... Descobri com a idade que não há este lugar “além do arco-íris”. Mas o narcisista de hoje passa a ideia de que já chegou lá, de que não precisa de ninguém. Ele não quer aporrinhações. A felicidade moderna é o consumo do outro, e o mundo é um grande pudim a ser comido. Meu homem feliz pode ter todas as mulheres, mas é casado consigo mesmo.
Não pensem que estou criticando isso; estou é com inveja dessa leveza de ser, dessa ligeireza nas relações.
Assim como a mulher deseja ser um objeto de consumo, como um liquidificador rebolante, um avião, o homem quer ser um grande pênis voador, um “passaralho” superpotente, mas frívolo, que pousa e voa de novo, sem flacidez e sem angústia.
O macho brasileiro tem pavor de ser possuído. Seu prazer é cumulativo, feito de apropriações indébitas, sem jamais incluir o prazer de ser “possuído” pelo outro.
Quer se apaixonar, mas tem pânico disso. O amor é desejado, mas aprisiona. Por isso, pela aridez do tempo, o amor ficou “transgênico,” geneticamente modificado e, como os hambúrgueres, virou “fast love”.
Por isso, nosso macho não se entrega; basta-lhe o encaixe. O encontro humano virou um modelo de armar. O macho A se encaixa em fêmea B, e produzem uma engrenagem C, repleta de luxo e arrepios entre lanchas e caipirinhas, num esfuziante casamento que dura três números de “Caras”.
E, ainda por cima, as pessoas atribuem uma estranha “profundidade” a essa superficialidade, porque esse diletantismo tem o charme de ser uma sabedoria elegante e “pós-tudo”.
O homem feliz da mídia é informado e cínico, conhece bem as tragédias do tempo, mas se lixa para elas, por uma falsa “maturidade”, um alegre desencanto. Ele vive em velocidade; o mundo veloz da internet, do celular, do mercado financeiro imprimiu-lhe um ritmo incessante, dando-lhe um glamour de onipresença, um funcionamento sem corrosão, uma eterna juventude que afasta a ideia de morte ou velhice. O homem “feliz” é antes de tudo um forte, mas um negador. Para ser feliz, é necessário negar, denegar, renegar problemas, esquecer. São três as receitas da felicidade: não pensar em doença, nem em angústia, nem em miséria.
Mas chega um dia em que o herói deprime, um dia em que a barriga cresce, o amargor torce-lhe os lábios, o pau cai e o homem feliz descobre que precisa de um ideal de encontro, algo semelhante à velha felicidade, pois ele sabe confusamente que a verdadeira solidão é apavorante. Então, ele passa a evitar que qualquer “profundidade” existencial possa pintar, que a ideia de finitude apareça à sua frente, senão sua “liberdade” ficaria insuportável.
Aí, ele percebe que precisa do amor, como uma esperança de “sentido”. E ele espera, então, uma sensação de eternidade, uma juventude para sempre, espera que o mistério da “falha” humana se revele — queremos esquecer, queremos “não saber” que vamos morrer, como só os animais não sabem. Não consegue amar, mas precisa amar, como única solução.
O problema é que amar exige coragem, e hoje somos todos covardes.
Daí, ele passa a viver um paradoxo: ligar-se sem ligar-se. Nosso homem livre inventa uma ideia de felicidade e de amor inatingíveis, para satisfazer-se numa eterna insatisfação. Como um James Bond fracassado que jamais perde a pose. Nem para si mesmo. E se gasta feliz nesta missão impossível.
Arnaldo Jabor
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