terça-feira, 1 de março de 2011

Uma Lei errada (Ferreira Gullar)

Campanha contra a internação de doentes mentais é uma forma de demagogia

Publicado originalmente em 12.04.09 na FOLHA DE S PAULO

A CAMPANHA contra a internação de doentes mentais foi inspirada por um médico italiano de Bolonha. Lá resultou num desastre e, mesmo assim, insistiu-se em repeti-la aqui e o resultado foi exatamente o mesmo.

Isso começou por causa do uso intensivo de drogas a partir dos anos 70. Veio no bojo de uma rebelião contra a ordem social, que era definida como sinônimo de cerceamento da liberdade individual, repressão "burguesa" para defender os valores do capitalismo.

A classe média, em geral, sempre aberta a ideias "avançadas" ou "libertárias", quase nunca se detém para examinar as questões, pesar os argumentos, confrontá-los com a realidade. Não, adere sem refletir.

Havia, naquela época, um deputado petista que aderiu à proposta, passou a defendê-la e apresentou um projeto de lei no Congresso. Certa vez, declarou a um jornal que "as famílias dos doentes mentais os internavam para se livrarem deles". E eu, que lidava com o problema de dois filhos nesse estado, disse a mim mesmo: "Esse sujeito é um cretino. Não sabe o que é conviver com pessoas esquizofrênicas, que muitas vezes ameaçam se matar ou matar alguém. Não imagina o quanto dói a um pai ter que internar um filho, para salvá-lo e salvar a família. Esse idiota tem a audácia de fingir que ama mais a meus filhos do que eu".

Esse tipo de campanha é uma forma de demagogia, como outra qualquer: funda-se em dados falsos ou falsificados e muitas vezes no desconhecimento do problema que dizem tentar resolver. No caso das internações, lançavam mão da palavra "manicômio", já então fora de uso e que por si só carrega conotações negativas, numa época em que aquele tipo hospital não existia mais. Digo isso porque estive em muitos hospitais psiquiátricos, públicos e particulares, mas em nenhum deles havia cárceres ou "solitárias" para segregar o "doente furioso". Mas, para o êxito da campanha, era necessário levar a opinião pública a crer que a internação equivalia a jogar o doente num inferno.

Até descobrirem os remédios psiquiátricos, que controlam a ansiedade e evitam o delírio, médicos e enfermeiros, de fato, não sabiam como lidar com um doente mental em surto, fora de controle. Por isso o metiam em camisas de força ou o punham numa cela com grades até que se acalmasse. Outro procedimento era o choque elétrico, que surtia o efeito imediato de interromper o surto esquizofrênico, mas com consequências imprevisíveis para sua integridade mental. Com o tempo, porém, descobriu-se um modo de limitar a intensidade do choque elétrico e apenas usá-lo em casos extremos. Já os remédios neuroléticos não apresentam qualquer inconveniente e, aplicados na dosagem certa, possibilitam ao doente manter-se em estado normal. Graças a essa medicação, as clínicas psiquiátricas perderam o caráter carcerário para se tornarem semelhantes a clínicas de repouso. A maioria das clínicas psiquiátricas particulares de hoje tem salas de jogos, de cinema, teatro, piscina e campo de esportes. Já os hospitais públicos, até bem pouco, se não dispunham do mesmo conforto, também ofereciam ao internado divertimento e lazer, além de ateliês para pintar, desenhar ou ocupar-se com trabalhos manuais.

Com os remédios à base de amplictil, como Haldol, o paciente não necessita de internações prolongadas. Em geral, a internação se torna necessária porque, em casa, por diversos motivos, o doente às vezes se nega a medicar-se, entra em surto e se torna uma ameaça ou um tormento para a família. Levado para a clínica e medicado, vai aos poucos recuperando o equilíbrio até estar em condições que lhe permitem voltar para o convívio familiar. No caso das famílias mais pobres, isso não é tão simples, já que saem todos para trabalhar e o doente fica sozinho em casa. Em alguns casos, deixa de tomar o remédio e volta ao estado delirante. Não há alternativa senão interná-lo.

Pois bem, aquela campanha, que visava salvar os doentes de "repressão burguesa", resultou numa lei que praticamente acabou com os hospitais psiquiátricos, mantidos pelo governo. Em seu lugar, instituiu-se o tratamento ambulatorial (hospital-dia), que só resulta para os casos menos graves, enquanto os mais graves, que necessitam de internação, não têm quem os atenda. As famílias de posses continuam a por seus doentes em clínicas particulares, enquanto as pobres não têm onde interná-los. Os doentes terminam nas ruas como mendigos, dormindo sob viadutos.

É hora de revogar essa lei idiota que provocou tamanho desastre.

4 comentários:

  1. Prezado Ferreira Gullar
    Certa vez você escreveu assim:

    Traduzir-se

    Uma parte de mim
    é todo mundo:
    outra parte é ninguém:
    fundo sem fundo.

    Uma parte de mim
    é multidão:
    outra parte estranheza
    e solidão.

    Uma parte de mim
    pesa, pondera:
    outra parte
    delira.

    Uma parte de mim
    almoça e janta:
    outra parte
    se espanta.

    Uma parte de mim
    é permanente:
    outra parte
    se sabe de repente.

    Uma parte de mim
    é só vertigem:
    outra parte,
    linguagem.

    Traduzir uma parte
    na outra parte
    — que é uma questão
    de vida ou morte —
    será arte?


    Quero acreditar que quem escreveu a coluna deste domingo de páscoa tenha sido apenas uma parte de você. Uma parte que não conhece os enormes avanços que a Reforma Psiquiátrica Brasileira e a lei (à qual você se refere como idiota), puderam fazer na vida e na história dos milhares de familiares e usuários com os quais lidamos no nosso dia-a-dia de trabalhadores da Saúde Mental. Antes desta lei - que não foi daquelas que surgiu de traz da orelha de um cretino qualquer, mas resultado de um processo de mais de 10 anos de discussão, luta, enfrentamentos e negociações - familiares e pacientes tinham no manicômio único modo de ter e oferecer "tratamento" para suas loucuras ou doenças mentais. A mesma parte que desconhece que existem sim em nosso País e em outros: manicômios - com este nome ou com outros mais amenos - que continuam a ferir direitos mínimos aos seus "frequentadores", manicômios que ainda mantêm pessoas encarceradas por 20, 30 ou mais anos, condenadas à reclusão simplesmente pelo fato de serem doentes mentais.
    Não quero acreditar que um poeta sensível como você consiga enxergar na doença de seus filhos somente pessoas dispostas a matar ou morrer quando estão em crise, outra parte de você, certamente, conhece muitas outras facetas e singularidades que só quem convive de perto com a esquizofrenia ou outras doenças mentais pode experimentar. Por isso minha carta é um convite... um convite para que você escute a outra parte de si mesmo e desta história que você conta de maneira rasteira e parcial, uma história que tem lá suas dificuldades e imperfeiçoes (e bem sabe você que num mundo perfeito não haveriam poetas) mas é uma história bonita e legítima e que merece no mínimo respeito. Convido outra parte de você a conhecer um CAPS (ou serviço deste tipo) e escutar o depoimento de usuários e familiares que lá frequentam, e que puderam mudar suas histórias por causa das transformações que esta lei provocou em suas vidas. Uma parte de você também não sabe que a hospitalização, de qualquer natureza, não é mais a única solução para as chamadas crises, existe muito mais a ser fazer...Outra parte de você também ficaria encantado em saber que esta lei contruiu muito mais coisas do que descontruiu, descontruiu os manicômios, mas construiu um sem número de outras possibilidades, dispositivos, formas de tratamento, além de muita arte, música e poesia...Creio sinceramente que quem escreveu este artigo é a parte de você que ainda não conheceu a outra parte da história...então venha conhecê-la, tenho certeza de que nenhuma parte de você irá se arrepender.

    saudações antimanicomiais

    Rita de Cássia de A. Almeida
    Juiz de Fora/MG
    trabalhadora de CAPS e militante da reforma psiquiátrica brasileira há 12 anos.

    Rita de Cássia · Juiz de Fora (MG) · 13/4/2009 14:27

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  2. Prezado poeta Ferreira Gullar,
    Venho muito respeitosamente me posicionar diante o artigo publicado pelo senhor no Jornal A Folha de São Paulo. O senhor fala de uma posição de pai de dois filhos. Eu venho lhe falar na condição de um usuário dos serviços de saúde mental (o termo usuário vem com a Lei 8.080 que criou o Sistema Único de Saúde).
    O movimento do qual eu faço parte, vem desde fins da década de 1970 lutando pela extinção dos manicômios no Brasil, pautado entre outras coisas, pela defesa dos direitos humanos das pessoas que foram internadas por décadas e esquecidas nos manicômios.
    Não é verdade que o manicômio conforme descrevíamos acabou. Recentemente o Brasi foi condenado por uma Côrte Internacional devido a morte de um paciente em uma clíunica psiquiátrica.
    Os casos de mortes acontecem por todo o país e muitas instituições psiquiátricas não dão as condições mínimas de salubridade a seus pacientes. Lutamos para acabar com este tipo de tratamento e ofertar para esta clientela, um atendimento mais humanizado (conforme preconiza o SUS) onde as pessoas não perdem seus vínculos familiares ou sociais, fazendo a própria comunidade onde ele vive se responsabilizar por aquele sujeito que sofre.
    Dentre as ações tomadas, encontram-se os CAPS, os serviços residenciais terapêuticos, a internação em Hospital Geral e CAPS III caso necessário, mais principalmente as ações sócio-culturais na vida destas pessoas.
    Sou fruto deste processo. Através de uma ação cultural denominada TV Pinel, pude amenizar os efeitos da minha internação (que Graças a Deus não passei por eletrochoque e outras medidas agressivas) e venho buscando retomar a minha vida cotidiana com muito esforço.
    Não queremos que as pessoas fiquem em casa sobrecarregando os pais. Queremos que o Estado lhes ofereça tratamento digno para que ela possa viver este momento trágico de maneira menos violenta possível.
    E, ao longo da histório de mais de 200 anos que se repete ainda hoje, o manicômio ou hospital psiquiátrico, conforme o senhor queira, não dá esta possibilidade aos usuários do serviços de saúde mental, fazendo com que os mesmos fiquem rotulados e sofram de estigmas como incapacidade,periculosidade, entre outros.
    Por fim, gostaria de convidar o senhor para conhecer melhor os princípios da reforma psiquiátrica brasileira e dizer que ao contrário do que o senhor afirmou em sua matéria, a reforma italiana serve de referência para todo o mundo.
    Saudações cordiais e antimanicomais,

    Edvaldo Nabuco
    Militante do Movimento de Luta Antimanicomial
    Pesquisador do LAPS/FIOCRUZ.

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  3. Caro Ferreira, a passionalidade de seu depoimento foi acompanhada de inumeras informações que você deveria rever, por sua incorreção. A extinção dos hospitais psiquiátricos representa uma construção histórica na qual milhares de pessoas estão engajadas, entre elas, familiares e usuários.
    Eu participei da intervenção de um hospital psiquiátrico em Sobral que tinha, sim, celas fortes, na qual os pacientes ficavam a tarde toda em um pátio sem água, e por 15 minutos tinham direito a um "bica"d'água pela qual lutavam desesperados, pois ficavam embaixo do sol quente de Sobral, Ceará. Enquanto isso, o dono do hospital tinha um parque aquático vizinho ao mesmo hospital! As condições sub-humanas infelizmenteainda existem em muitos desses espaços, nos 38.000 leitos que ainda sobram. Veja bem, extinguir internações em hospitaismpsiquiátricos não significa extinguir as internações psiquiátricas. Há experiências de leitos psiquiátricos em hospitais gerais bem sucedidas.
    Não desconsidero seu sofrimento como familiar, mas apenas o questiono, que, como figura pública que você é, deveria ter mais cuidado e informação com o uso das palavras, que podem ser devastadoras e minar uma luta na qual tantas pessoas estão envolvidas. Luta por cidadania, melhores condições de cuidado e inclusão social da loucura, o que inclui também cuidar dos familiares que se sobrecarregam com situações dramáticas.
    Espero que o senhor aceite o convite que diversas pessoas estão lhe fazendo e conheça experiências importantes.
    Boa sorte com seus filhos,
    Maria Gabriela Curubeto Godoy
    Médica Psiquiatra de Fortaleza/Ceará

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  4. Sou Márcia Mont’Alverne, Terapeuta Ocupacional, trabalho no CAPS II de Sobral - Ceará há 10 anos. Aqui predominava o modelo hospitalocêntrico manicomial que NUNCA teve compromisso com o cuidado em saúde mental, pelo contrário, produziu dívidas existenciais impagáveis.. De lógica marcantemente lucrativa, foi um exímio sequestrador de identidades e causou muitas mazelas aos usuários lá internados. Felizmente a casa de horrores (ironicamente chamava-se casa de repouso Guararapes) foi fechada em 2000 e em seu lugar foi implantada uma Rede de Atenção Psicossocial, composta por diversos dispositivos, que estão oferecendo uma atenção de qualidade, humanizada e integral. Uma Rede que está possibilitando um novo lugar social para a pessoa com transtorno mental. Este ano, eu e a professora Maria Salete Bessa estaremos lançando um livro (nesse semestre) sobre a história da saúde mental e da Reforma Psiquiátrica em Sobral-CE: Os Relatos dos usuários são impressionantes. No livro estão evidenciadas (mediante os discursos de usuários assistidos nos dois modelos, familiares e trabalhadores da saúde participantes da minha pesquisa), as características predominantes nesses dois modelos (hospitalocêntrico e o psicossocial).
    Interpreto o conteúdo escrito por Ferreira Gular como um desabafo de um pai "cansado", "sofrido" da luta árdua com os filhos que apresentam transtornos mentais. E de fato não é fácil essa convivência, é um desafio diário, é uma grande arte. A boa notícia é que existem serviços de saúde mental que dão respostas efetivas no enfrentamento do transtorno mental, tais como: CAPS, Unidades de Internação Psiquiátrica em Saúde mental, enfim dispositivos compromissados com o cuidado de qualidade e humanizado.
    Obrigada pela oportunidade em realizar o comentário

    Márcia MontAlverne · Sobral (CE) · 21/4/2009 16:18

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