domingo, 6 de julho de 2008

Viagem às Fontes de São Luís. Autor: Kkampus

Mais uma contribuição especial para nosso Blog. Nosso amigo Wesley (Kkampus), não nos surpreende, está sempre num crescendo ilimitável. Isso particularmente me enriquece como pessoa e nos enche de orgulho. Só tenho a agradecer. Vale a pena conferir o conto que segue. Aproveitem e boa leitura!



Viagem às Fontes de São Luís.

As ruas de cada lado da fonte, calçadas de paralelepípedos, trepidavam à passagem dos automóveis circulantes, contrastando com o molejo preguiçoso de carroças puxadas por jumentos. A sombra de um solar a frente, de cor salmão, amenizava o sol escaldante daqueles dias de outubro. Na fonte, duas barras brancas paralelas em alto relevo, convergiam no alto, formando a pirâmide, e no seu frontispício_ O Deus das Águas: Netuno, imponente, desafiador. Eu molhava os pés na água fria onde pequenos peixes nadavam, encurralados na pequena canaleta, entre as pedras de cantaria do chão. Numa pequena casa na Rua do Ribeirão, havia tomado um suco de sapoti e outro de cupuaçu; decidi não comer nada sólido, pois uma longa jornada de mergulho me aguardava e preferia me deixar leve e desperto. Os transeuntes com suas roupas coloridas_ magrelas de saias rendadas, caboclinhos com calções no rendengue, comuns com seus olhos apertados pela luz intensa da tarde_ enfeitavam aquelas vielas antigas resistentes ao tempo. Tarrrde...! Tarrrde!... Eu repetia várias vezes a quem no parapeito da fonte chegava e observava-nos atentos, com esta saudação que denotava uma curiosidade explícita. Não tive como recusar uma suculenta manga, que uma senhora me ofereceu. Aos colegas, soava estranho as gentilezas do povo simples daquela cidade. Achavam interessante e riam do emprego certo dos verbos na segunda pessoa como forma de tratamento. Assim, a fruta que já estava no fim, ainda provocava comentários, sendo imitado o “para ti” pelos sulistas da companhia de mergulho. O antro da fonte refletia o branco límpido das suas paredes, contrastando com a parede azul do quadro emoldurado pelas pilastras; entre elas, as cincos carrancas, majestosas, enigmáticas, jorrando uma água límpida e fria. Os homens já haviam abertos os cadeados dos pequenos portões de ferro que davam acesso ao interior das galerias da fonte. Era trabalho como tantos outros já realizados, mas era de importância imensa, era meu primeiro mergulho arqueológico em São Luís, minha cidade; em pouco tempo estaria na história, participando da ventura de desvendar quase quatrocentos anos de lendas sobre aquele lugar. Será se encontraria a serpente que ali habitava? Será que atingiria igrejas e conventos por aqueles túneis? Ou será se ia dar no mar, passando por labirintos embaixo do Palácio dos Leões? Não importava o medo que sentia, destilava um suor na testa disfarçado em calor tropical, mas chegara a hora e a vida tinha virado verdade: os sonhos são engraçados, eles parecem mudar de intenção e significados: O mergulhador profissional no auge dos seus vinte e sete anos era somente um menino, escabreado... Buscando uma saia de chita, para se enrolar, (que não mais havia), com a lembrança nítida dos pavores noturnos que aquelas historias despertavam.
Adentramos a fonte, as paredes internas escuras e cobertas de limo. Seguia em frente com a água rasa, pela cintura, mas em poucos metros atingimos um grande lago, como se fora uma piscina redonda, que possuía cinco pórticos, que eram cravejados de pequenos tijolos. A partir dali tínhamos que explorar os portões mergulhando. Segui minha intuição e submergi entrando no pórtico mais estreito; fui adentrando, guiado pela curiosidade pulsátil, o túnel era escuro e sabia que me arriscava; de repente senti que uma súbita correnteza me levava pro fundo, tentei segurar-me nas paredes, mas estavam lisas, não permitindo que me agarrasse; quis manter a calma, mas comecei a ficar com medo, pois não tinha mais domínio sobre o mergulho; procurava manter-me reto com os braços estendidos, para não perder meus equipamentos. Segui nesse breu por um tempo que me pareceu infindável, caí numa piscina de águas claras, mas desta vez havia somente uma saída. Aproveitei e retirei a mascara de mergulho, visualizei as pinturas na abóbada daquele recinto, mostrava duas construções semelhantes a igrejas, que se mantinham unidas por uma cobra de duas cabeças, e circundando a imagem, vários pequenos golfinhos. Não sabia e nem tinha cabeça para decifrar aquela figura. Saí de frente do túnel de onde despenquei, não havia como retornar, só podia seguir por aquele pórtico mais largo, mas sem saber onde se destinava. Vesti novamente a máscara e mergulhei a cabeça na entrada do pórtico, segurando-me com ambas as mãos nos tijolos da moldura. Via um feixe de luz no túnel, um alento. Pensei... Gritei naquela caverna, mas os ecos não me davam respostas. Olhei no relógio e vi que eram dezesseis horas, achei melhor mergulhar senão a noite chegaria e perderia o beneficio da luz do sol. Precisava de um abrigo melhor. Novamente estava noutro túnel, o coração se acelerava, a água borbulhava. Seguia a correnteza leve, então senti um forte aperto no peito, ficara sem fôlego, o pânico me tomara, estava sendo arrastado, rodopiando e raspando na parede do túnel, acho que ia morrer, perdi os sentidos... Ao acordar estava acorrentado em algemas douradas, duas cobras emitiam silvos em minha volta, tinham olhos vermelhos e brilhantes. Então um tridente insinuou-se junto ao meu pescoço e uma voz pouco inteligível perguntara o que fazia ali. Tentei explicar que estava estudando as galerias da Fonte do Ribeirão. Mentira!... Mentira! Você é da mesma raça daqueles que se diziam devotos. Todos mortos, pela ganância, pelo extermínio de meus protegidos, os desnudos. Parecia haver entre nós um hiato de tempo de quatrocentos anos. Entendi que ele falara dos colonizadores portugueses. Fitei em seu rosto e vi a mesma imagem da fonte. Reconheci-o como Netuno, estava ali diante do inimaginável, acreditei que estava sonhando ou, talvez, morto. A raiva evidente sobre seu cenho fechado ia esvaindo-se ao ver profundamente nos meus olhos; de alguma maneira sabia que ele lia meu pensamento e entendia que eu não era dali e nem buscava tesouros. Mas sua voz continuava enérgica. Ainda temia pelo pior. Disse que os segredos das águas não poderiam ser revelados e que ninguém que chegara ate ali poderia voltar à superfície. Ficaria confinado ali naquele lugar, sem sequer alguém saber o que acontecera comigo, meus olhos, agora, vermelhos e marejados, continham a sensação da derrota, todos os meus sonhos aniquilados pelo meu próprio sonho. Gostaria de não ter seguido minha intuição, mas a entropia da situação abortava qualquer tentativa de retroceder e condicionar minhas escolhas. O que me restava? Um vácuo no meio do peito que me esfriou as pernas; respirava novamente com dificuldade, mesmo sem qualquer abraço das cobras que me vigiavam. Na mente, que em desespero foge, trazia novamente o acalanto da minha mãe, e ouvia ela em sua doce voz me entregando um pequeno pacote: Para ti! E pulei de felicidade com o meu golfinho azul. Não tinha idéia agora onde estava aquele golfinho de brinquedo, amigo de tantas conversas inventadas; caíra num bueiro num dia de chuva quando o coloquei para “nadar” na sarjeta da ladeira que parava na minha rua. Minha mãe falou que ele nadou para o grande oceano, atrás de uma bota cor-de-rosa, após tentar de tudo para conter meu pranto. As algemas foram abertas com um gesto circular com o tridente, em instantes fui novamente envolvido pelas cobras, e aí notei que era uma só, com duas cabeças. Retornarás a tua vida, ao meu jeito, esqueça-me! Viva o teu sonho de infância; este é meu presente para... Disse Netuno, mas não ouvi as ultimas palavras; fui arrebatado num movimento brusco da cobra. Mergulhamos no poço e íamos fundo, peguei fôlego, e quando já sentia que não poderia mais reter o ar, libertei-me daquela amarra e nadei velozmente, estava no mar, olhei a terra e vi a cidade, com seus casarões, suas igrejas, os azulejos, mas não reconhecia aquela montanha, não reconhecia o mar azul, não me reconhecia, tinha virado um golfinho. Conseguia ler, mas estava em silencio, o silencio da consciência num corpo animal. Vi uma escuna, cheio de pessoas que me fitavam com seus risos, disparando as suas máquinas fotográficas, apontando-me para o deleite das crianças. Na lateral via o nome: Paraty, Brasil. O termo Para ti, coincidentemente vinha me perseguindo nesse dia e entendia agora o seu amplo significado.
A noite ia chegando, as matizes alaranjados do céu, traziam uma melancolia, quebrada pelos fogos de artifício. Era festa na cidade. E eu ali distante, no mar, privado do convívio humano, de suas vicissitudes, de seus sucessos. Não entendia as relações entre São Luis e Paraty, além do mar, de seu casario, de seus pescadores, das pessoas modestas, dos seus poetas. Não era para entender, os caminhos não importam como são trilhados, você chega onde deve chegar, o destino é o destino! As águas, como têm uma inércia frágil, permite-se vagar por distancias, atravessar o tempo e as nuances que diferenciam os seres vivos. Já não me cabia fazer qualquer questionamento, não precisava de fama, de dinheiro, de descobertas, de trabalho, nem fazer juízo entre os bons e os maus, minhas dores acabaram. Agora precisava de coisas básicas, respirar, comer uma sardinha, nadar, sentir o mar em toda sua plenitude. Dotado da capacidade animal de sempre voltar para seu lugar, devotei um último olhar aquelas escarpas verdejantes que abrigavam aquela cidade. Nadei para trás, com meio corpo sobre a linha d água, soltei um grito, um guincho típico de golfinhos. Estava voltando, em busca de águas mais quentes. Nadei por dias e noites, não precisava dormir; curti várias alvoradas e vários crepúsculos, indiferente a tantos outros golfinhos e homens. Vi a lua minguando nas noites solitárias; vez por outra seguia o rastro das embarcações. Sentia-me um verdadeiro golfinho. Avistei a Ilha do Medo, segui até a beira-mar, um místico de alegria e tristeza me invadiu, mas os golfinhos não choram... Pensei desanimado. Então escutei uma voz atrás de mim, era um outro golfinho, uma bota cor-de-rosa, que me convidou a um passeio: seguimos o Rio Bacanga, olhei o Palácio dos Leões, as ponteiras da Igreja do Carmo, da Sé e do Desterro. Foi quando um redemoinho me puxou pro fundo, voltara a nadar velozmente, no escuro, sem direção. Parei num túnel estreito e via luz no fim, não via mais a bota amiga. Olhei duas janelas de ferro, a água não era mais mar, sentia o barulho de fonte jorrando, gritei como golfinho e ouvi: olá!... Tinha virado humano novamente; encontrei um caminho por sobre o muro da fonte, pulei... Descansei chorando junto a uma palmeira... Vi um pequeno objeto azul, pálido enterrado... achei novamente impossível: era o meu golfinho da infância! Uma moça de olhos levemente puxados me ofereceu uma manga, dizendo: Para ti! Seus olhar era amigo, eram os olhos da bota, eram os olhos da cobra. Fez um gesto levando o dedo indicador em riste em seus lábios. Havia entendido que era preciso silencio, e a verdade era que só havia uma galeria que unia a Fonte do Ribeirão à Fonte das Pedras... Quem as fez? Netuno? Os Portugueses? Não, as águas e seus encantos...Para ti.

Autor:Kkampus.

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